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DO “LUGAR DO MORTO” ÀS VIDAS DO LUGAR: TRIÂNGULO PEDAGÓGICO E CIENTIFICIDADE EM EDUCAÇÃO NOS DIAS DE HOJE¹
O campo educativo tem passado, nas últimas décadas, por um profundo processo de mutação e reconfiguração, onde novos fenômenos e novas problemáticas emergem desafiando tanto professores e gestores como a expertise da comunidade científica da área, conforme já estivemos a sublinhar em outra oportunidade². A bem dos fatos e da necessidade de se produzir uma intervenção credenciada para enfrentar tal situação, cabe realçar a já clássica formulação de Jean Houssaye em torno do chamado ‘triângulo pedagógico’ ³ .
Isto é, esse autor aporta uma chave analítica e de leitura da ação pedagógica consubstanciada pela figura de um triângulo cujos vértices são constituídos pelo saber, pelo professor e pelos alunos. De acordo com ele, a ação pedagógica que não se decline no registro da complexidade é uma ação dual, priorizando as relações entre dois vértices do referido triângulo, em detrimento do terceiro. Desse modo, a estabilização da ação pedagógica fica dependente do fato de o terceiro vértice aceitar ou não as “regras do jogo” (definidas pelos outros dois vértices). Dito de outra forma, e lançando mão de uma ‘metáfora psicanalítica’: essa estabilização supõe que um dos vértices do triângulo ocupe o “lugar do morto” ⁴ . Assim sendo, a ação pedagógica em que se destaca a figura do ensinar, encontra-se estruturada em torno das relações entre o professor e o saber, com o aluno ocupando, portanto, o mencionado “lugar do morto”. Por outra parte, a ação pedagógica construída em volta das relações entre o aluno e o saber, tem como premissa que o professor ocupe o “lugar do morto”, privilegiando-se o aprender. Last but not least, a ação pedagógica focada na instrução, estritamente, tem como suporte a relação entre professor e aluno, sendo, neste caso, o saber o “lugar do morto”.
Ocorre que a atual mutação do campo educativo faz com que a produção de “subjectividades profissionais” dos professores seja fortemente perturbada pelo reforço da tendência para o “morto” não aceitar as regras definidas pelos restantes protagonistas da ação pedagógica. Conforme tem sido assinalado, “o ‘morto’ parece ter enlouquecido, na medida em que adquire qualidades e modos de estar, na instituição escolar, que se afastam das que seriam expectáveis e desejáveis. Dir-se-ia, por isso, que a erosão do regime de familiaridade que os professores mantinham com a sua ação está associada ao enlouquecimento do morto” ⁵, quer dizer, e continuando com a ‘metáfora psicanalítica’, ao “enlouquecimento” do aluno ou dos saberes – ou mesmo dos próprios docentes.
Nesse contexto, os professores têm vivido situações de intenso sofrimento profissional, que decorrem, em parte, da relação de estranheza que estabelecem com os jovens e adolescentes que frequentam a escola, assim como com as atuais formas de vivência da juventude no ambiente escolar. Para que se procure entender uma das dimensões centrais dessa relação de estranheza, ter-se-á que lançar mão dos contemporâneos dispositivos analíticos da sociologia da educação, designadamente daqueles que tratam da distinção entre jovem e aluno, e do ofício que a este é atribuído⁶. Isto porque a referida relação é expressão da inadequação entre as qualidades dos jovens e as propriedades atribuídas aos alunos/às modalidades de relações sociais que eles desenvolvem. Penso que não é demais repisar um fato sócio-histórico básico relativo aos sistemas educativos: eles emergiram nos alvores da modernidade alimentando a ilusão de ‘ensinar a muitos como se fossem um só’ ⁷. Consequentemente, a escola daí resultante, estando estruturada em função dessa ‘ilusão’, vê-se hoje impactada pelas diversas heterogeneidades dos públicos que a frequentam e pelos seus distintos modos de organização/sociabilidade.
É nesse quadro, de mutação do campo educativo, que importa pensar as políticas, a escola, a sua gestão e a formação tendo em conta o que sublinhou Resweber⁸, ao afirmar que, contemporaneamente, em educação, se coloca a necessidade de tomar distância de aspectos defasados de modelos passados, priorizando-se a construção de novas abordagens tanto do ponto de vista da análise como da intervenção.
Em consonância com isso, é de se considerar que a defasagem entre a vida na escola e a vida escolar (de atribuições a cumprir), isto é, a defasagem entre as gramáticas das formas de vida dos estudantes e a gramática escolar (institucional) tende a produzir disposições subjetivas nos professores em que o mundo escolar é percebido como um mundo caótico, difícil de lidar e habitado por jovens indispostos a cumprirem as suas obrigações (o seu ofício de aluno). Por essa senda, avolumam-se, por exemplo, os casos de violência escolar.
A tentativa de equacionar tal situação, seja do ponto de vista das políticas educativas, seja do ponto de vista dos diversos processos de gestão interna à escola, requer, por exemplo, que se considere que, se o propósito da formação é o de contribuir para o desenvolvimento de novas identidades e práticas, ela deve apoiar-se em bases programáticas onde, a partir de uma ‘ciência feita em ruptura’, se tenha em atenção o cotiando escolar, as especificidades dos seus agentes e os fenômenos que (des)estabilizam os seus padrões de sociabilidade, bem como as suas ordens cognitivas e administrativas. Trata-se, enfim, de se aproximar de uma racionalidade que aposta num modo de fazer ciência processual, buscando gerir situações educativas complexas e imprecisas.
1 O presente artigo é parte do texto escrito a título de prefácio para o livro Gestão dos Processos Educativos em Contexto de Pandemia, organizado pelas professoras Maria Edgleuma de Andrade, Maquézia Emília de Morais e Samira Fontes Carneiro (Edições UERN, 2022).
2 Ver LEITE, Ivonaldo; CORREIA, José Alberto. Reconfigurações do campo educativo: impasses pedagógicos, desafios teórico-práticos e alternativas, in BATISTA, Aline C. et. al. Formação e prática docente: uma pedagogia nascida na diversidade cultural. João Pessoa: Editora da UFPB, 2017.
3 Ver HOUSSAYE, Jean. Le Triangle pedagogique: théorie et pratiques de l’éducation scolaire. Berne: Peter Lang, 1988.
4 Seguindo os passos de Freud, no tocante à comparação da situação analítica com o jogo de xadrez, Lacan a relaciona ao jogo de cartas de bridge. Conforme a sua perspectiva, o analista convoca a ajuda do que, nesse jogo, é chamado de ‘morto’, mas para fazer surgir o quarto
jogador que, do analisado, será parceiro. Dessa forma, o lugar dos sentimentos do analista é o ‘lugar do morto’. Por isso, então, o questionamento sobre a contratransferência, quer dizer, da colocação em jogo dos sentimentos do analista. O quarto jogador esperado no jogo é o sujeito do inconsciente. Ver LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios do seu poder, in
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
5 Cf. CORREIA, José Alberto; PEREIRA, Luísa Álvares; VAZ, Henrique. Políticas educativas e modos de subjetivação da profissão docente. Cadernos de Pesquisa, vol. 2, nº 146, 2012, p. 396.
6 Ver SIROTA, Régine. Le métier d’élève. Revue Française de Pédagogie, nº 104, 1993, p. 85-108.
7 A propósito, ver BARROSO, João. Os Liceus: organização pedagógica e administração (1836-1960). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, v. 2.
8 RESWEBER, Jean-Paul. Les pédagogies nouvelles. Paris: Presses Universitaires de France, 6. ed., 2007.